Olá, sou Yan Vancelis

Sou um designer generalista. Por aqui, falo sobre assuntos que envolvam tecnologia, design, produtos e muito mais.

  • Os Xeon do AliExpress e a MetaReciclagem

    Uma das retomadas na minha vida esse ano foi ter voltado a acompanhar o mercado de hardware, já que precisei montar um computador de mesa para trabalhar e não fazia isso já tinha alguns bons anos. Hoje, como muitas coisas da vida, é muito fácil acompanhar esse mercado via canais de Youtube, através de análises, notícias e tutoriais que tem seu valor inclusive como entretenimento. E assim como outros segmentos que cobrem produtos de tecnologia, também está presente nesse mercado uma gama enorme de produtos da nossa queridinha chinesa, a AliExpress.

    Produtos de qualidade com preço acessível

    Nos últimos anos, os marketplaces chineses cresceram muito aqui no Brasil, e seguem fortes mesmo com os (des)incentivos fiscais do governo brasileiro. Os famosos produtos BBB, bons, bonitos e baratos, do jeito que o brasileiro gosta. É inegável a qualidade dos produtos chineses e a incrível variedade de opções disponíveis para um mesmo tipo de produto, algo impossível de achar em terras tupiniquins. Mas o assunto desse texto é um tipo de produto em específico: hardwares usados e reciclados, mais especificamente processadores da linha Xeon da Intel.

    Que Xeon da Xuxa é esse?

    Assunto de embates acalourados e trocas de acusações internet a fora, esse é talvez o produto mais inusitado disponível na AliExpress. Xeon é um processador da Intel focado em servidores, ou seja, feito para computadores de grande porte e alto desempenho e são responsáveis por dar vida aos datacenters que executam as aplicações em nuvem que utilizamos no dia a dia. Praticamente tudo, inclusive e muito provavelmente esse site, rodam em cima desses computadores. Acontece que, como todo produto tecnológico, eles também ficam obsoletos e precisam ser substituídos, e é aí que entramos nessa história: para onde vão os processadores descartados? Para o lixo, correto? Não mesmo. Eles são revendidos na AliExpress a preços de pizza. Isso mesmo.

    E sim, eles funcionam muito bem. Via de regra, dados os avançados processos de fabricação, processadores são produtos absolutamente duráveis, difícil ouvirmos casos de que um queimou. E eles possuem até um ecossistema paralelo de placas-mães que, embora sejam novas, são fabricadas a partir de componentes reaproveitados para tornar possível o uso desses processadores em computadores de mesa convencionais, e sim, elas também são baratadas, estando na faixa dos R$200 e 300 reais. Dessa forma, com cerca de 500 reais, você adquire um kit utilizável que inclui processador de alto desempenho, uma placa-mãe e memórias, o suficiente para montagem de um computador para rodar jogos e outras aplicações, o que é pelo menos metade do preço se comparado a plataformas atuais convencionais da própria Intel.

    Estelionatários do Xeon

    E é claro que essas facilidades encontrariam seu espaço em canais de Youtube que monetizam links, algo natural e feito por praticamente qualquer criador de conteúdo hoje em dia. Se você buscar por Xeon em qualquer rede social, verá uma série de vídeos falando desses kits, para o bem e para o mal.

    E mais especificamente na semana que escrevo esse texto, tá rolando uma treta que envolve acusações de canais a outros canais por supostamente recomendar esses produtos ao invés de novos, sem deixar claro que são produtos que tem a origem que tem, apenas para monetizar com as vendas. Em alguns casos, essas críticas beiram o nível do preconceito, da elitização e até uma espécie de culpabilização de quem adquire e usa esses produtos, como se fosse trapaça adquirir um processador de 50 reais que entrega na prática desempenho de um processador de 500 reais novo.

    Nem preciso dizer que tudo isso é uma grande bobabem. Cada um sabe o que faz com seu dinheiro e sabe inclusive o que dá para fazer, pois vivemos em um país que, embora rico, é absolutamente desigual, e muitas vezes esses kits garantem um começo para alguém que quer ter um computador para se divertir ou trabalhar. E aqui começo a entrar em outro ponto nessa história, que julgo importantíssimo e vejo ser pouco abordado pelos canais, que é o aspecto da sustentabilidade.

    Um case indireto de MetaReciclagem

    O que vou falar aqui vai parecer que sou velho, mas na minha juventude, tive formação em um projeto social da área de inclusão digital. E lá, além da formação tecnológica, recebíamos também uma formação humana e aprendíamos a ter um olhar especial para a nossa comunidade, nosso entorno. Por isso mesmo, o termo correto é inclusão Sociodigital. Era importante para nós, além de aprender a lidar com tecnologia, levá-la para aqueles que precisavam, e uma das formas de se fazer isso era através da MetaReciclagem.

    MetaReciclagem é um reaproveitamento do lixo eletrônico com fins sociais, visando promover a inclusão digital principalmente para as comunidades carentes.

    Twiki / UFBA

    A MetaReciclagem parte da necessidade de reaproveitar componentes tecnológicos em uma indústria que avança tão rapidamente que mal conseguimos acompanhar, mas que gera quantidades absurdas de lixo eletrônico. Esse é um conceito que não ouço falar a muito tempo, que parece ter sido esquecido dadas as facilidades atuais, mas que continua absolutamente necessário.

    A solução para quantidade de lixo tecnológico que tende a se acumular devido à crescente voracidade de consumo de aparelhos tecnológicos é o desapego. Doar, compartilhar, consertar e botar para funcionar é o caminho para a ascensão tecno-espiritual.

    Twiki / UFBA

    Existem outros ideais por trás desse conceito, incluindo o uso de Software Livre, a colaboração, aprendizado e claro, um grande senso de solidariedade. Há também uma ideia de apropriação desses componentes, de transformar o que antes era lixo em transformação social. Sei que o caso dos Xeon não é exatamente um case de MetaReciclagem, mas não deixa de envolver alguns desses parâmetros. Afinal de contas, continua sendo o reaproveitamento de componentes que seriam descartados e ganham vida nas mãos de quem precisa.

    Reaproveitamento e sustentabilidade

    Partindo desses princípios, percebemos que os Xeon da AliEpress possui uma dimensão social interessante, ainda que por linhas tortas. Embora exista a figura dos chineses que lucram com a venda desses itens, eles não deixam de promover uma reciclagem importante de produtos que virariam lixo e, ao invés disso, ganham mais alguns anos de utilidade, algo que é muito necessário em um mundo que gera a quantidade absurda de lixo que nós geramos.

    E o fruto dessa reciclagem é a oportunidade de consumidores brasileiros (e de outros países) a acessarem produtos de tecnologia com preço acessível. E embora o padrão seja o uso para entretenimento, e não há nenhum problema com isso, esses computadores podem servir também para fins ainda mais transformadores, como uso para trabalho e estudos, ainda mais pensando em profissões digitais onde a barreira de entrada é muito menor, e isso é mais uma parte da história que nos leva aos bons valores das iniciativas de Inclusão Digital, que é a transformação social.


    Espero que esse texto mude o pensamento daqueles que acham que julgam a aquisição desses produtos por serem “lixo eletrônico”. Isso não é demérito e sim um dos maiores méritos dessa história.


    Referências

    twiki.ufba.br/twiki/bin/view/MetaReciclagem/MetaReciclagem